Neste tempo-espaço de aceleração de processos transformacionais, locais e globais, a violência pode ser compreendida como um sintoma de uma humanidade enferma, em grande medida, num processo evidente de declínio, sob o peso de suas próprias contradições.
Testemunhamos no século XX, perplexos e horrorizados, a duas guerras mundiais, com um intervalo de apenas 21 anos entre o término da primeira e o início da segunda. Entre outros cerca de três centenas de conflitos bélicos, tão dementes quanto, embora menores.
Como se não bastasse, iniciamos o milênio e o novo século, na leitura de muitos Pesquisadores de cenários, na fatídica data de 11 de setembro de 2001, com a gélida face do terror. Um evento trágico e redefinidor, que entra na história da comunicação como o que mais constelou a atenção do público mundial. E que se desdobra num imenso e ensangüentado campo de batalha, onde se busca eliminar a violência com uma violência maior. Desde então, as pessoas mais sensíveis e dotadas de um mínimo de escuta e de visão se perguntaram:
Onde nos perdemos? Como a educação fracassou? O que é uma pessoa educada? O que é um país realmente desenvolvido? De onde brota, enfim, tanta demência e violência?
A violência pode ser considerada um sintoma, estridente e doloroso, de uma doença maior da humanidade: a ignorância existencial e o esquecimento do Ser. Nos últimos séculos, com o exercício de uma razão excludente e imperialista, hipertrofiamos a mente analítica, que divide e fragmenta, gerando todo tipo de fronteiras, onde transcorrem os conflitos e dilaceramentos. Já que diabolos é um termo grego, que significa o que divide e dissocia, nossa crise tem uma característica diabólica.
O seu oposto é o symbolos, o fator simbólico do sagrado, que religa e restaura a inteireza. Sofremos de uma anemia da inteligência simbólica, da consciência subjetiva e intersubjetiva, de uma atrofia da mente sintética e conectiva, da perda da consciência de comunhão. Eis a constatação óbvia: nós agredimos alguém quando nos sentimos, dele, desconectados. Nós excluímos o outro por nos sentirmos, dele, separados. Seja num campo de futebol ou na arena internacional, a violência é uma função das fronteiras: quanto mais nos sentimos desvinculados, mais buscamos nos defender, o ataque passando a ser justificado pela ameaça do fator estranho, daquilo que julgamos não nos dizer nenhum respeito. Nesse contexto, a consciência de participação e de comunhão adquire o valor de um preceito ético imprescindível. A violência brota de um tipo de alienação normótica, que Pierre Weil denomina de fantasia da separatividade. O ego representa o diabolos por excelência, fator básico da separatividade pessoal, que se encontra na fonte mesma da violência em nível individual, social e ambiental. Portanto, o egocentrismo pode ser considerado a causa comum de todo tipo de violência. E, naturalmente, não será com a lógica do ego que resolveremos esse dilema, por ela mesma criada. Assim, uma terapia para a paz solicita, inexoravelmente, o resgate da dimensão transpessoal, da consciência simbólica inerente a uma mística, que se traduz pela consciência não-dual, geradora do amor e do serviço em movimento. Transcender o ego não significa negá-lo, destruí-lo ou suprimi-lo. Trata- se de sujeitá-lo ao self, abrindo-o para o oriente do amor e do ser. Como afirma a sabedoria hindu, o ego é o melhor empregado e o pior patrão. A primeira tarefa, no processo da individuação, proposta por Jung, é desenvolver um bom ego, enraizado no solo da cidadania, curado de suas feridas, pacificado em seus conflitos, apaziguado em seus temores.
Só podemos transcender o que foi reconhecido, aceito, desenvolvido e integrado. Só superamos o que já foi conquistado. O diabólico necessita ser orientado pelo simbólico; o bisturi retalhador precisa ser conduzido pela visão totalizadora e norteadora, capaz de ver a gestalt, a totalidade. Como afirma o sábio axioma holístico, Pensar globalmente, agir localmente. Para deixar de agir loucamente, convenhamos. De outra forma, seguiremos tudo rasgando e dilacerando, cega e violentamente, a exemplo das aplicações irresponsáveis da tecnociência, que tão bem conhecemos e sofremos. O todo descansa na parte e a parte
só tem um sentido pelo todo. O um da unidade e o dois da dualidade são transcendidos no três, da aliança: unidade diferenciada ou diferenciação unificada. Essa boa parceria da análise e da síntese, do diabólico e do simbólico nos conduz a uma inteligência da Trindade, arejada pelas energias do amor, esse mistério que nos vincula, realçando a alteridade de nossos semblantes. Ninguém é uma ilha, ninguém é completo em si mesmo. Cada ser humano e um pedaço do continente, afirma o famoso poema de John Donne. Mais sábia e inclusivamente, observa Anne Lindbergh que todos nós somos ilhas unidas pelo mesmo oceano.
Roberto Crema
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