Espiritualidade restauradora

 

O mosaico de variáveis constituintes da natureza humana – não completamente conhecido pela ciência – promove uma ampla gama de respostas cognitivas e comportamentais entre as vítimas de traumas psicológicos. Isso se deve em parte pelas incontáveis possibilidades de processamento dos eventos estressores, o que afeta criticamente a configuração ou não do trauma. Pesquisadores mostraram uma forte relação entre o trauma psicológico e o desenvolvimento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), Transtorno Depressivo, Transtorno de Personalidade, Transtorno Somatoforme, fobias específicas e fobia social, auto-mutilação, suicídio, comportamentos de alto risco e abuso de substâncias (como drogas e álcool).
Embora as memórias traumáticas sejam em maior parte associadas ao TEPT na literatura, um grande número de pessoas traumatizadas não preenchem os critérios diagnósticos ao TEPT ou outros transtornos psiquiátricos. Essas pessoas podem apresentar o TEPT parcial (ou subsindrômico) – correspondentes a 30% da população – e com freqüência procuram a psicoterapia. Estudos americanos mostraram que a prevalência, ao longo da vida, de eventos potencialmente traumáticos pode alcançar de 50% a 90%, enquanto a prevalência do TEPT na população geral é estimada entre 8% e 10%. Esses dados mostram que os eventos estressores, por si só, na maioria dos casos, não conduzem necessariamente à manifestação do trauma psicológico. Embora existam diferenças de qualidade signifi cativas na maneira como as pessoas traumatizadas e não-traumatizadas processam e categorizam suas experiências, há questões de extremo interesse e convenientes à Psicologia e à Psiquiatria que ainda precisam ser respondidas. Por que 90% das vítimas de traumas não desenvolvem TEPT? Que variáveis poderiam predizer a superação face ao trauma? Seriam esses fatores úteis no tratamento de pacientes traumatizados? Para respondê-las, pelo menos parcialmente, trazemos as contribuições dos estudos mais recentes sobre um tema que sempre existiu no curso da história humana, a despeito de diferentes épocas ou culturas: a espiritualidade e a religiosidade.

O IMPACTO DO TRAUMA E A SUBJETIVIDADE

Na tragédia de 11 de setembro, amigos e familiares das vítimas criaram um altar em frente às Torres Gêmeas: homenagem aos entes queridos para amenizar a dor e oferecer conforto
A surpresa e o imponderável estão geralmente associados a ocorrências traumáticas que alteram, às vezes drasticamente, uma dinâmica estável de vida. As pessoas que sofreram traumas, frequentemente perdem por algum tempo a estabilidade constituída para conduzir o dia-a-dia e podem, assim, favorecer o esmaecimento da motivação para viver, o isolamento e a depressão. Solidão, vazio, desesperança e desamparo são palavras utilizadas, com frequência, por indivíduos traumatizados, para exprimirem seu estado emocional. Nessas e em outras condições, muitas pessoas buscam um novo significado e propósito para sua vida. A religiosidade e a espiritualidade estão fortemente enraizadas numa busca pessoal para compreender a vida, seu significado e suas relações com o sagrado ou o transcendente. Assim, as crenças e práticas espirituais e/ou religiosas podem contemplar essa necessidade de buscar um sentido mais amplo para a vida e influenciar a maneira como as pessoas interpretam e lidam com acontecimentos traumáticos.
É no mínimo curioso como a subjetividade e as respectivas representações internas articulam percepções, memórias e sistemas de crenças capazes de gerar respostas objetivas ao longo da vida. Estudos longitudinais de 30 anos sugerem que um estilo de vida mais positivo, como, por exemplo, conseguir enxergar um copo como meio cheio ao invés de meio vazio, foi um fator crítico para a longevidade e uma saúde melhor. Por outro lado, o estilo de vida pessimista e de desesperança esteve associado significativamente à mortalidade.
Fé x trauma
Vários estudos mostraram que muitas pessoas lidam com eventos estressores ou traumáticos apoiados em suas crenças religiosas. Uma pesquisa de âmbito nacional, nos Estados Unidos, sobre as reações ao estresse após o evento de 11 de setembro, mostrou que recorrer à religião (orações, religiosidade ou espiritualidade) como forma de enfrentar o respectivo estresse foi a segunda maneira mais comum de lidar com o impacto emocional do evento (90%), seguindo-se ao ato de conversar e compartilhar com outras pessoas, que ocupou o primeiro lugar, com 98%. O uso da religião como forma de enfrentamento é, também, frequente em casos de doenças graves.
Centenas de estudos têm investigado a relação entre o envolvimento religioso e saúde mental. A maioria deles revela que quanto maior o envolvimento religioso, maior o bem-estar e a saúde mental. O uso positivo da religião esteve associado não só a melhores resultados físicos e mentais em pacientes com enfermidades graves, como também entre as vítimas de traumas psicológicos, por exemplo, pessoas afetadas por catástrofes naturais.
O uso da religião para lidar com problemas, no entanto, nem sempre está associado a melhores resultados. Um estudo longitudinal de dois anos com pacientes idosos enfermos mostrou que o uso negativo da religião (como questionamentos do tipo “Deus me abandonou” ou “Deus não me ama” ou “Foi obra do demônio”), esteve associado a um maior índice de mortalidade, mesmo após ser feito controle das variáveis demográfcas de saúde física e saúde mental.


ESPIRITUALIDADE E TRAUMA

Uma recente meta-análise de 49 trabalhos, envolvendo um total de 13.512 indivíduos, investigou a associação entre o uso da religião (no enfrentamento de traumas) e o ajustamento psicológico ao estresse. O uso positivo da religião teve uma relação positiva moderada (r=0,38) com o ajustamento psicológico positivo e uma correlação inversa discreta (r=-0,12) com o ajustamento psicológico negativo. Por outro lado, o uso negativo da religião mostrou uma correlação positiva (r=0,22) com o ajustamento psicológico negativo. Os autores discutem que “diferentes tipos de situações podem ter diferentes implicações para o enfrentamento e o ajustamento psicológico frente ao estresse”. O estudo não forneceu descrições dos tipos de situações envolvidas. Contudo, podemos entender que os diálogos internos, processados com o enquadre religioso, variam sensivelmente de acordo com a orientação através da qual as pessoas matizam suas representações do fato ocorrido. Isto é: as sínteses cognitivas extraídas dos diálogos subjetivos podem orientar as respostas comportamentais e emocionais. Há necessidade de pesquisas mais extensas a respeito do impacto de diferentes formas de enfrentamento pela religiosidade e espiritualidade sobre o ajustamento a experiências traumáticas.

A dor do trauma pode se tornar mais suportável e breve por meio da fé pela fé ou pela escolha de alguma religião específica
Um outro estudo que destacou uma possível conexão entre espiritualidade, religiosidade e trauma investigou 1.385 veteranos de guerra em tratamento de TEPT. A experiência de matar outras pessoas e de fracassar em evitar a morte de companheiros enfraqueceu a fé dos veteranos. Curiosamente, a gravidade dos sintomas de TEPT e dificuldades na adaptação social não se mostraram como fatores preditivos tão fortes do uso continuado dos serviços de saúde mental quanto a fé religiosa enfraquecida. Os autores chamam atenção à possibilidade de que a motivação primária dos veteranos que buscam o tratamento possa ser a procura por um significado e uma razão para suas experiências traumáticas. Isto sugere que a espiritualidade possa desempenhar uma função mais importante do que se supunha no tratamento do TEPT. Ao rever onze estudos empíricos sobre a associação entre espiritualidade, religiosidade e crescimento pós-traumático, Shaw e colegas (2005) relataram três principais achados: (I) a espiritualidade e a religião são geralmente, embora nem sempre, benéficas para lidar com as consequências do trauma; (II) experiências traumáticas podem conduzir a um aprofundamento da religiosidade e da espiritualidade, e (III) o uso produtivo da religião, a abertura espiritual/ religiosa, a prontidão para enfrentar questões existenciais, a participação religiosa e a religiosidade intrínseca estão associados de forma característica ao crescimento pós-traumático.


ESPERANÇA E ENFRENTAMENTO

Entre os importantes ganhos adaptativos da fé, mencionamos a potencialização da vontade e o enfrentamento de dificuldades severas por meio da confiança. A falta de confiança e esperança, por outro lado, pode favorecer o esmorecimento em face ao trauma. Pargament (1997) sugeriu que o uso da religiosidade e espiritualidade para o enfrentamento do trauma tem algo especial a oferecer: pode, de maneira única, capacitar os indivíduos a responder a situações em que tenham que se deparar com os limites do poder e do controle humanos no confronto com a vulnerabilidade e a finitude. Além disso, crenças e práticas religiosas podem reduzir a sensação de perda do controle e de desamparo; podem fornecer uma estrutura cognitiva capaz de atenuar o sofrimento e ainda fortalecer o indivíduo à reconstrução de sua vida.

SOLIDÃO, VAZIO, DESESPERANÇA E
DESAMPARO SÃO PALAVRAS UTILIZADAS, COM
FREQUÊNCIA,POR INDIVÍDUOS TRAUMATIZADOS



A Neurociência mostra que, mais do que registros factuais, o que o cérebro armazena são traços de informações posteriormente usados para reconstruir as memórias, as quais nem sempre representam um retrato fidedigno de uma experiência passada. Sempre que um acontecimento traumático é recordado, o mesmo pode sofrer mudanças cognitivas e emocionais. Além disso, estudos com neuroimagem funcional de pessoas com memórias traumáticas mostraram uma atenuação da atividade no córtex pré-frontal (relacionado à classificação e à categorização das experiências) e no hipocampo (envolvido nos processos de síntese, aprendizagem e memória), assim como maior atividade da amídala (área do cérebro relacionada à expressão do medo).
A maior parte das pesquisas neurofuncionais com provocação de sintomas (evocação do trauma) em indivíduos com TEPT mostrou atividade acentuada da amídala e concomitante decréscimo da atividade no córtex pré-frontal. O córtex pré-frontal tem projeções neurais robustas para a amídala e para estruturas temporais-mediais e talâmicas (memória de longo prazo). A menor atividade cortical pré-frontal envolvida na atenuação do feedback negativo da atividade da amídala pode obstruir o processamento de sínteses cognitivas, assim como representar uma extinção deficiente das respostas ao medo e desregulação emocional.
Alguns estudos neurofuncionais mostram, também, uma diminuição significativa da atividade na área de Broca relacionada à tradução das experiências pessoais em uma linguagem comunicável. Esse achado é compatível com a dificuldade que indivíduos com TEPT têm para verbalizar um acontecimento traumático numa narrativa estruturada. O conjunto das pesquisas com neuroimagem reforça a natureza não-verbal das lembranças traumáticas em voluntários com TEPT e uma expressão mais verbal/narrativa das memórias traumáticas em voluntários sem TEPT. Assim, o processamento narrativo, a estruturação semântica da memória e a geração de sínteses cognitivas – indicadores do processamento pré-frontal – são desafios à psicoterapia, para que as respostas emocionais exacerbadas – indicadoras da atividade do complexo amidalar – sejam arrefecidas. Construir novas narrativas, baseadas em percepções saudáveis, pode facilitar a integração dos traços mnêmicos traumáticos e dos fragmentos sensoriais numa nova síntese cognitiva, contribuindo dessa forma para diminuir os sintomas do TEPT.
O conceito de enfrentamento e superação pelo uso da religiosidade envolve muitos aspectos cognitivos. Exemplos de enfrentamento positivo incluem: reavaliação benevolente (buscando uma lição divina para o acontecimento); apoio espiritual (buscando conforto por meio do amor e cuidado divinos); entrega religiosa ativa (fazendo o que é possível quanto às responsabilidades pessoais e colocando o resto nas mãos de Deus); busca de uma conexão espiritual (considerando que a vida faz parte de uma força espiritual maior); busca de uma direção religiosa (rezando para encontrar uma nova razão para viver). Tais crenças influenciam a interpretação dos acontecimentos da vida e a atribuição de significado e coerência. Essa estrutura narrativa pode contribuir para a integração das sensações e emoções dispersas das experiências traumáticas no sentido da superação. Apoiando essa hipótese, estudos com neuroimagem funcional sugerem que a integração de fragmentos emocionais e sensoriais do trauma por meio de uma narrativa estruturada parece ser um fator-chave à superação (veja quadro Trauma psicológico e Neurociência). Futuros estudos precisarão investigar as implicações clínicas e neurofuncionais dos aspectos cognitivos do uso da religiosidade e espiritualidade no enfrentamento do trauma.
Embora as crenças espirituais e religiosas possam ser importantes para o desenvolvimento e o crescimento após o trauma, os terapeutas não têm por conduta incentivar qualquer sistema de crenças em particular. Por outro lado, terapeutas que trabalham com indivíduos traumatizados devem estar confortáveis com clientes que levantem assuntos existenciais e espirituais. É uma necessidade terapêutica e um dever ético o respeito a estas opiniões, a empatia, assim como a continência à realidade subjetiva que o cliente traz, ainda que os profissionais não compartilhem das mesmas crenças.


RESILIÊNCIA

Crer em algo
Há muitas religiões e cada uma delas tem seu próprio jeito de reverenciar uma divindade e de se posicionar no mundo, recebendo diferentes nomes e conquistando seus adeptos. As mais difundidas são: Cristianismo, Maometismo, Taoísmo, Hinduísmo, Confucionismo, Budismo, Judaísmo e Afro-tradicionais.
As pesquisas sobre trauma apontaram para a importância das diferenças individuais quanto à resiliência – capacidade de atravessar dificuldades e recuperar uma qualidade de vida satisfatória – e à vulnerabilidade como fatores-chave na intensidade e duração dos sintomas relacionados ao trauma. Alguns traços de personalidade agem como “protetores” aos indivíduos expostos a estresse intenso. Baseado em observações de sobreviventes de campos de concentração nazistas que foram capazes de manter-se saudáveis e levar uma vida normal apesar do que tinham vivido, Antonovsky desenvolveu o conceito de “sentido de coerência interna” (SCI). O SCI está fundamentado em três componentes: compreensibilidade (a vida e seus acontecimentos têm sentido em termos cognitivos; é a habilidade de compreender a situação como um todo); significabilidade (a vida faz sentido do ponto de vista emocional; os problemas são vistos como desafios e não como fardos); manejabilidade (habilidade para usar os recursos disponíveis para lidar com os acontecimentos da vida). Esse conceito procura fornecer alguns indicadores dos motivos pelos quais algumas pessoas conseguem permanecer bem apesar de vivenciarem situações severamente estressoras. O SCI foi investigado em mais de 500 estudos e esteve fortemente associado a uma melhor percepção da saúde, particularmente da saúde mental. Pessoas com alto SCI mostraram-se mais resilientes sob condições de estresse. Apoiando esses resultados, outros estudos demonstram que um fator decisivo para desenvolver a resiliência pode ser o modo como o indivíduo processa e elabora a experiência. Pessoas que desenvolvem padrões interpretativos de enfrentamento e tentam modificar o presente de forma positiva, mostraram maior facilidade para superar traumas psicológicos. Por outro lado, padrões que envolvem autopiedade, abandono, autovitimização e autodepreciação podem intensificar as emoções negativas relacionadas às lembranças traumáticas e exacerbar o sofrimento.
Estudos demonstraram que a religiosidade também pode ajudar o enfrentamento do trauma através do apoio social, que em geral desencoraja comportamentos autodestrutivos, como o uso de drogas e álcool, e incentiva o perdão e a continuidade da vida alinhada à saúde. Exemplos de superação de indivíduos que aprenderam e se desenvolveram a partir de suas experiências traumáticas, que cresceram espiritualmente e adquiriram tranquilidade ao lidar com as dificuldades podem ser referências para novos processamentos e enquadres cognitivos às vítimas de traumas. A experiência clínica e a literatura fornecem muitos exemplos e depoimentos de pessoas que perderam entes queridos, que foram sequestradas, que sofreram acidentes, amputações, abuso sexual, entre outros episódios traumáticos, e conseguiram restaurar a confiança para levar adiante sua vida com qualidade.

Há múltiplos e, algumas vezes, inesperados caminhos para a resiliência. Uma vez que a desesperança é fator de risco para o TEPT tanto quanto o desamparo, uma hipótese razoável seria a de que a continência e o amparo podem proteger os indivíduos expostos a ocorrências potencialmente traumáticas. Vale lembrar que o Brasil possui uma importante expressão religiosa sincrética e alta prevalência de praticantes de religiosidade/espiritualidade – apenas 7,3% da população não têm religião. Contudo, a integração das dimensões espirituais e religiosas dos clientes em seus tratamentos requer alta qualidade de conhecimento e habilidades para alinhar as informações coletadas sobre as crenças e valores à eficácia terapêutica.
Finalmente, nossa compreensão sobre a adaptação humana ao trauma se estende aos poucos. Dado o reconhecimento dos efeitos potenciais das crenças religiosas e espirituais nos comportamentos resilientes, os estudos nesse âmbito devem continuar!

Fonte: Internet


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