Onde Começa o Amor



Quando eu caía, nos meus tempos de criança, abria o berreiro e, num passe de mágica, aparecia um monte de adultos: mãe, pai, avós, tios, bisavô. Só faltava a imprensa. Até o cachorro da época, que nem gostava muito de mim porque tinha ciúmes da minha mãe, corria para ver o que eu havia aprontado daquela vez. Geralmente, nada: era uma menina muito tranqüila. Tanto, que se fosse possível voltar no tempo eu resgataria a oportunidade de ser um pouco mais levada. Como não é, fica pra próxima.

Caía como gente de toda idade cai. Por descuido. Por uma momentânea falta de equilíbrio. Sem saber que troço aconteceu para confundir tanto as pernas. Aí vinha a parte boa do tombo: com exceção do cachorro, que não queria conversa comigo, era comum eu ganhar beijinhos daquela turma, sob a alegação de que o carinho faria o susto passar. Às vezes, eu nem estava mais assustada, não havia nada doendo, mas prolongava o choro só para ser mais beijada. Eu era tranqüila, mas não era boba.

Doce sabedoria, aquela: joelhos e braços continuavam feridos por alguns dias, mas o susto realmente passava logo depois do cuidado carinhoso. Para os machucados do corpo, existem alternativas para curativo. Mas, para os sustos dos tombos que a gente leva na vida, o que é bom mesmo é amor. Sem talvez perceberem, aqueles meus queridos protetores faziam algo muito importante ao permitir que o meu susto fosse reconhecido. As manchas roxas na pele tendem a desaparecer num curto período de tempo, com ou sem aplicação de pomada. As manchas que os sustos colorem na alma, não. Essas precisam de outro tipo de atenção para serem dissolvidas.

Alguns sustos somente se dissipam quando encontramos alguma palavra, algum carinho, alguma luz, que os libertem. Susto doído aprisionado pode virar um ponto de obstrução na alma que dificulta que a vida flua mais contente. A gente pode escolher fingir não lembrar que existe uma tristeza que não foi beijada ali, mas isso não faz com que ela pare de doer em silêncio, e poucas coisas são tão perigosas como as dores que crescem sem fazer barulho. Olhar, reconhecer, chamar pelo nome, tratar, é escolher beijar, esvaziar, e seguir.

De sustos doídos, de outra natureza, muito diferentes dos tombos da infância, nós entendemos bem. Não acho que seja possível passar pela vida sem susto algum. Não, não temos controle com relação a isso. Com toda a tecnologia do nosso mundo, não existe uma tecla que, ao ser apertada, nos impeça definitivamente de sofrer. Ninguém escapa da dor. Eu, pelo menos, nunca conheci uma pessoa que nunca tenha vivenciado o sofrimento, de alguma forma, em algum lugar da caminhada.

Por mais que a vivência seja solitária, não estamos sozinhos nesse sentimento. Em qualquer local do planeta, todos sabem do que se trata. Às vezes, até achamos que sofremos mais do que os outros e ficamos estagnados nessa crença. Mas, isso não vem ao caso. Não nos interessa competir para saber de quem é a dor maior. O que interessa é descobrir como podemos esgotá-las. Curá-las. Transformá-las. E é aí que entra a metáfora dessa história: depois de adultos, isso começa com o nosso próprio reconhecimento. Com o nosso próprio beijo. Com toda gentileza possível com a nossa vida. Com a nossa permissão.

De vez em quando, reencontro pessoas que passo muito tempo sem ver e elas me contam de novo sobre a mesma dor. Aquela que, com o passar dos anos, costuma se ramificar em outras tantas, às vezes já impressas no corpo. Pode mudar o cenário, as personagens, mas o argumento está intacto. E a impressão que me dá, em algumas circunstâncias, é que, de alguma maneira, elas continuam lá na infância, aguardando vir somente de fora os beijos para os seus sustos, o curativo para os seus machucados. É como se ficassem paralisadas nessa expectativa.

Aperta o meu coração, uma vontade de dizer sem saber se o outro quer ouvir: cuida de você, você pode, você é capaz, não fica aí nesse lugar. Vontade de dizer, compassiva, com empatia, porque eu muitas vezes também fiquei esperando. Até começar a entender que, depois que a gente cresce, a proteção amorosa, o suporte, a delicadeza, precisam começar na nossa relação com nós mesmos. É muito bacana, uma dádiva, termos relações de troca afetuosa e zelo recíproco na nossa vida. Uma benção receber amor. Mas quando a gente dói, a gente precisa saber formas de cuidar da própria dor com o jeito carinhoso com que gostaríamos de ser cuidados pelos outros, com a delicadeza com que cuidamos de outras pessoas. A gente precisa se ter, antes de tudo. O beijo precisa começar em nós.

Ana Jácomo
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